Crónica V: Portalegre: um paraíso
desperdiçado
Com a desculpa de ter de ir
comprar uma garrafinha “Botica” de licor de tangerina e pinhão, que só em
pensar no sabor do líquido docemente amarelo-reluzente fico com a boca feita em
água, dou por mim a estacionar o carro no Largo do Palácio Amarelo.
Enquanto faço a manobra sou
assaltada, como sempre, pela lamentação de ver tão bela e rica construção
votada ao abandono. Ver assim reduzida a nobre arquitectura burguesa a um mal
arrumado armazém mirra-me a alma e para me reconfortar dialogo com a minha
imaginação. “Mal sabem os portalegrenses
do enredo que já corre nas minhas páginas dentro daquele palácio branco e
amarelo…”.
Absorvida pelas ideias que saltam
da fértil veia romântica digiro-me contrariada para o parquímetro sempre
maldizendo a inércia de quem ainda não conseguiu libertar a zona histórica/comercial
da cidade de Portalegre daquelas máquinas infernais comedoras de moedas e
afugentadoras de clientela.
Dobro a esquina da Igreja da
Misericórdia, actual Escola de Artes do Norte Alentejano e entristeço-me por
ver vazias as escadarias, que há menos de meia dúzia de anos (nem tanto), eram
o ponto de encontro de dezenas de jovens que ali se deslocavam para alimentarem
ou aperfeiçoarem o seu gosto pela música. Os jovens com o seu frenesim que lhe
é saudavelmente habitual davam alma àquela zona da urbe com suas conversas,
risadas e acordes musicais mais ou menos afinados. “Até a arte nos sugam por uma palheta tão singela que, encantados que
andamos por ainda conseguirmos ter a cabeça fora de água, não nos apercebemos
que o corpo submerso está mirrado até ao tutano”.
Dou meia dúzia de passos e todas
as ideias românticas que pudessem brotar ao pisar a calçada portuguesa que serpenteia
suavemente rua a baixo desvanecem-se pela ausência de transeuntes e pelo número
de portas fechadas que em tempos, não muito idos, eram a entrada de uma e outra
loja. Agora amontoa-se o pó nas vitrines.
Umas portas mais a baixo entro
num espaço comercial mais uma vez reinventado. Agora numa típica mercearia,
onde uma simpática senhora me faz uma apresentação dos produtos que tem à venda,
demorando-se orgulhosamente naqueles que são o fruto do empenho de uns tantos
portalegrenses que optam (numa luta diária) por oferecer à terra natal todo o
seu talento. Finjo desconhecer os artigos pois deleito-me com as palavras
sábias da lojista que de forma empenhada defende o princípio de que o que é
“portalegrense é BOM.” Retribuo sorrisos e elogios aos nossos produtos
regionais que tanto sucesso têm além fronteiras alentejanas. Acabo por adquirir
não só a “Botica” como também umas deliciosas amêndoas de Portalegre, cujo
desfazer lento do sabor a chocolate se mistura graciosamente com o estalar da
amêndoa torrada.
Como ainda me sobra o meu bem
mais valioso, o tempo, decido continuar a descer a Rua do Comércio, que
infelizmente pouco jus faz ao nome. Mudamente congratulo todos os que
corajosamente insistem em manterem o comércio aberto daquela rua tão pouco
movimentada e que periodicamente se desdobram em eventos para que os
portalegrenses a visitem e valorizem. Penitenciou-me pelo mesmo pecado.
Já perto das Portas da Devesa,
ali mesmo, sobre as pedras centenárias tenho a ideia de fazer o caminho de
volta pela Rua 1º de Maio.
A uns tantos passos olho para a
recente construção que ocupa o espaço da defunta Moagem de Portalegre e
lembro-me das vezes que ali fora ao final de tarde comprar a tão saborosa
boleima ou as línguas de sogra. A saudade invade-me. Questiono as opções
urbanísticas que vão esvaziando a cidade do seu património edificado que a
tornavam ela própria e não uma cópia de outras e tantas outras cidades. “Não será a individualidade dos locais um
atrativo turístico?”
Quando as construções urbanas
deixam a descoberto a serra da Penha e a sua cruz altaneira supostamente
protectora dos portalegrenses, os olhos descem até à brancura da ermida e vá-se
lá saber porquê recordo os versos de José Régio na Toada a Portalegre “ Em Portalegre, cidade do Alto Alentejo,
cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros…”
Vou caminhando, com os olhos
postos na imensidão da paisagem que se estende para lá do IC13. Pela enésima
vez apaixono-me por tudo o que a vista e a memória conseguem alcançar. O
coração bate forte por mais uma vez se encantar com a imensidão do azul ciano,
com a variedade de tons de verde, com os amarelos das giestas, com a
transparência das poças de água que se juntaram com as últimas chuvas e que
aqui e ali cintilam por entre o arvoredo e as quintas que se estendem para lá
da Fonte dos Fornos. Por instantes viro às costas à paisagem tentando focar as
torres da Igreja da Sé à procura das tão emblemáticas cegonhas e do som oco do
bater dos bicos, o matraquear.
Retomo a minha caminhada. Como uma adolescente
que reconhece o primeiro grande amor (pois nessa idade todos os amores são o
primeiro e grandes), atravesso a estrada, para de costas para a estátua do
eterno semeador de plantas ou de sonhos, emocionada por me deixar guiar pelas
cores, pelos aromas e pelos sons humidamente doces da primavera. Ergo os olhos
como que agradecendo à providência divina a graça de ter dotado esta terra com
uma luminosidade inigualável.
Mesmo ali à minha frente o sol
vai aos poucos despedindo-se da terra deixando no arco do horizonte um rasto
vermelho alaranjado. As nuvens cinza escuro tornam a paisagem ainda mais
romântica. Inspiro e expiro, melancolicamente apaixonada.
E apesar da minha fraca devoção
pergunto a Deus: “O que fazer para todos convencer
que este é o melhor lugar do mundo para se viver? Com este êxodo forçado dos fertilmente jovens quem ficará, depois de a tormenta
passar, para rejuvenescer e encher de vida a nossa terra? Pode ser… pode ser…
que depois da tempestade venha a abonança!”
Com desalento encolho os ombros.
Não em sinal de resignação. Mas por saber que temos pela frente um hercúleo
desafio.
Lúcia Papafina (abril de 2014)